Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.
Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.
Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma idéia platônica no espaço?
O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.
Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Lucíola, 22 Acordara. Ainda tonta, só via um círculo branco luminoso numa placa também branca, mas opaca. Aos poucos foi encontrando um pouco de verde clarinho ao seu redor. O olfato também ia denunciando sutilmente o lugar onde estava. Dessa vez o éter não era do laboratório do colégio, onde ela sempre derramava um pouquinho na barra da farda e corria pra salinha conjugada. Não viu o grande esqueleto e nem o professor fedorento. Não estava sentada, mas deitada. E ela ouvia vozes distantes. Só que estavam ali do lado as pessoas que falavam, eram o médico, a enfermeira e sua mãe. Sim, era um quarto de hospital.
Ela ainda não estava consciente do que acontecera. A enfermeira avisou à mãe que era o efeito da anestesia geral e que logo ela estaria de volta a si. Pediu que ela recolhesse as lágrimas, seria melhor assim. Quando Lucíola finalmente sentiu sua mão sendo acariciada pela mãe e encarou seu rosto, percebeu que algo trágico havia acontecido. E tinha sido com ela. Afinal se tocara que estava numa cama dentro de um quarto de hospital coberta com um lençol verde. Ao seu lado, toda a sorte de máquinas e aparelhos. Na mesinha, muitos frascos, algodão e seringas. Sobre sua cabeça, soro e sangue.
"Filha...". Não adianta, dona Íris não ia conseguir. O médico veio em seu auxílio e em muitas palavras disse o que poderia ser resumido em apenas quatro: você perdeu uma perna. De fato, ela não a sentia mais. O médico ainda disse que ela teve sorte. O acidente foi grave, poderia ter morrido. "Chega de falatório. Me dopem de novo!", exigiu. "Entenderam!? Eu exijo. E-xi-jo!"
Mas chegou o dia em que ela teve que sair daquela cama. "Malditos planos de saúde! Ficam expulsando a gente", esbravejou enquanto ajeitavam a cadeira de rodas. "Como é mesmo o nome do remédio?", perguntou antes de se despedir. Se fazendo de inocente, o médico na cara dura ainda pergunta "Qual?". "Esse que faz dormir e esquecer", disse Lucíola sem olhar para nada. "Você precisa de um terapeuta", aconselhou.
Por insistência da família, visitou um tal de Doutor Antero Fagundes. Renome, livros publicados e um monte de papel emoldurado e pregado na parede. E bonito, apesar desse nome de velho. Ele falava, ela não ouvia. Ele queria ouvir, ela se calava. Só pensava em como o Antero era chamado quando criança. "Onde já se viu criança com tal nome?", pensava. Acrescentava nas idéias que nunca um filho dela teria nome de velho. "Que filho?", questionava e olhava para a perna imaginária.
Trocou a cadeira por muletas, mesmo contra as recomendações. "Que conforto que nada! Pra porra a comodidade!", ela queria voltar a ter 1.68m falar olhando os outros nos olhos sem virar o pescoço. Cansou da postura abaixada e misericordiosa das pessoas agachadas ao seu lado. Queria olhar para baixo quando visse uma criança. Queria enxergar o mundo assim novamente, mesmo que o pisasse diferente, só pela metade. Em pouco tempo se acostumou com a muleta, embora no começo temesse cair de tanto tropeçar e sentisse dores nos braços. Com a muleta ia a todo canto e tinha mais ânimo. Encarava as pessoas. Sentia-se melhor.
Esperava atravessar a movimentada avenida à beira do canal e estava impaciente com aquele semáforo que demorava a ficar vermelho. Mesmo mais acostumada aquela muleta ainda lhe deixava doída ao final do dia. Portanto quanto mais cedo chegasse em casa melhor. Iria repousar a muleta a seu lado, deitar e assistir TV até cair no sono... E ainda pensava na cama quentinha quando sentiu o impacto. Caiu no chão e viu sua muleta ao longe sendo carregada. Ninguém lhe estendeu a mão. Sequer olharam para ela. Perdeu a muleta de vista.
Olhou para a sua mão esfolada na queda, suja daquela imundice da calçada. Virou a face na direção do canal, especialmente fétido naquela tarde e viu sacos plásticos, papéis, um pé de sapato e até uma cadeira. Arrastou-se por entre as pessoas e ninguém notou sua presença abaixo de suas cinturas. Parou, olhou para os lados e inclinou-se. Deixou-se levar pela gravidade. Em que mundo estava em que o impacto de um corpo na água não assusta ninguém?
* * *
A família ainda procura. Não sabem seu destino. O que terá acontecido a Lucíola? Ninguém sabia... Sua mãe não queria pensar no pior. Mas se tal fatalidade tivesse acontecido queria ter conhecimento, queria os rituais. Morbidamente pensava na perna que estava no jazigo da família. São João Batista, tradição acima da modernidade desses novos crematórios, parques e jardins. Todos os antecendentes repousavam no mármore desgastado do velho cemitério. A perna também.
Lucíola sempre preferiu o cinza, a impermeabilidade e a dureza do granito. Embora depois de morta, isso pouco fosse importar. E ninguém nunca descobriu onde Lucíola repousa.
Assim como nunca descobriram as placas das notícias que a atropelaram.
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonta.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece e as estrelas lá no céu lembram letras no papel quando o poema anoitece.
A aranha tece teias. O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? (Paulo Leminski)
Do fundo do meu arquivo morto. É primário, eu sei, escrevi quando estava no colégio ainda (faz tempo!). Achei em uma agenda velha durante um limpa nas minhas gavetas e resolvi transcrever porque continua atual. Não manguem! Bote um desconto, que eu só tinha uns 16 anos, gente. Ai, ai, ai...
Na sala, o que restou da família. No quarto, alguém que matura o estar só permanente. Outra noite assistindo à novela das oito. Qual é mesmo? Qualquer uma. A mesma. Pouco importa. Acabou. Melhor desligar a televisão; ler um livro, ouvir música, dormir, ou tudo isso. Todas as ações ao mesmo tempo e sem efeito. A madrugada chega novamente; e, com ela, as lágrimas surgem fluentes, abundantes e escondidas. Soluços abafados no travesseiro, com as mãos. Unhas roídas, revirando-se na cama. Coriza, rosto quente e vermelho. Prudente fechar a porta. Melhor que ninguém veja. O quarto, quente; a janela, fechada. Palavras sufocadas. Janela e cortinas abertas, vento fresco no rosto molhado. O céu está limpo. Só ele. No walkman, músicas à toa. Vontade de escrever, caneta na mão, mordidas na tampa de uma bic. Idéias confusas, embaralhadas na cabeça. Pensar às vezes é uma angústia, mil coisas pela mente e pelo peito aperta. Eu ainda sou a mesma, sei pouco, sei o que me foi ensinado. Mas já aprendi que devo buscar além.