Falando em voz, a circunstância não foi a melhor, é verdade, mas gosto de ligaçõesde quem tem voz de amiga.
Falando em sumiço, alguém me lembre de dar uns cucurutos bem seguros na minha irmã também. Onde já se viu a pessoa passar mais de uma semana sem dar notícias a ninguém. No Rio de Janeiro!!!
Sabe quando uma voz no telefone é tudo o que você precisa para dormir tranqüila? Agora eu não estou mais gelada de preocupação, nem de medo. Estou feliz. Ficarei mais quando puder dar um abraço bem apertado. Depois de umas broncas, claro. Mas é só porque eu adolo tu, amiga. Eu sei que você sabe.
* Não dá mais esses sustos na gente, não, tá? *
* Nóis tudim te ama *
O normalmente pernóstico caderno Mais! da Folha de São Paulo trouxe hoje em sua capa uma matéria interessante sobre os a(r)tivistas. Com citação ao cearense Transição Listrada (do Vitor, do Rodrigo e do irmão dele, Renan).
Você está sugerindo que ele vai sentir a minha primeira ausência em mais de um ano?
Vai nada! Não vai nem reparar.
Ainda bem que hoje isso pouco me importa.
A utilidade deveria ser proteger Lucíola do sol e das indiscrições dos vizinhos, mas para ela a película servia para ver o céu lilás. Naquele fim de tarde cheio de nuvens, os pés tocando o mármore do parapeito, os tornozelos tilintando nas grades de proteção – nossa, como protegiam a menina! – o céu de duas cores prenunciava chuva. Cinza pela esquerda, roxo pela direita, o par de pernas no meio. Um vento raro estava se tornando comum na cidade tão constantemente quente. Balançava as fotos penduradas por fios agora embaraçados, abria e fechava os livros, levantava o vestido. A menina achava o céu chuvoso bonito, mas não alterava seu pensamento de que tudo o mais era horrível...
Com a vista escura e uma pedra de chumbo no peito, levantou-se com pressa, não sem antes machucar o tornozelo na grade – besteira – fechou a janela com estrondo e se enfiou dentro do banheiro. Com a porta trancada, era esse o único lugar onde lhe restava privacidade, onde podia se esconder da saraivada de perguntas e cobranças de todos que a cercavam. Tranqüilidade nervosa, choro entrecortado por soluços abafados... Ora, Lucíola!
Com o rosto úmido e salgado, olhou-se no espelho. Nua. Estava tão branca, bem mais do que o seu normal. Palidez, eu diria.
Precisava de sol.
Mas eram dias de chuva...
E como choveu aquele fim de tarde! Um temporal! As águas com toda a força querendo lavar e levar tudo. A chuva fazia um barulho ensurdecedor, os relâmpagos lembravam-na dos medos da infância, os gritos e bateres de portas. O passado presente, presente não rejeitado, mas também pouco querido. Não havia saudade, apenas estava ali imóvel, sem querer partir. Nesse turbilhão, Lucíola indecisa sobre o que deveria tentar salvar. O que valeria a pena? O que recompensaria lutar com a força das águas? O que pagaria suas alvas pernas tão encharcadas? Não encontrou respostas.
Saiu do chuveiro, enxugou-se e colocou um vestido desses de ficar em casa. Voltou ao mesmo lugar de antes da chuva, deitada na cama com os pés apoiados no parapeito da janela. De olhos fechados, ouvindo o barulho de torrente, batendo os pés... Mas os pés sentiram o mármore seco. Levantou-se e viu que tinha uma mancha roxa na perna no lugar em que havia batido na grade – ser muito branca dá nisso, qualquer besteirinha machuca – e constatou perplexa que a rua estava seca, tanto quanto antes. Tornou a deitar-se, pondo as pernas no mesmo lugar, sentindo o mesmo vento e a chuva forte que não a abandonava.
Chuva, sim. Não era sobre, era dentro aquela tempestade.
* * *
Faltava sol para ter coragem de exibir as pernas novamente. Por enquanto não havia pernas com que seguir...
Ir para onde? De certo apenas que quando fosse, levaria salvos o Neruda, o Pixiguinha e a medida do Bonfim. Mais do que isso, resolveu manter o corpo, a alegria, o sangue e o coração. Além da insistência.