Leocádia Aproximou-se do balcão. Encarou aquele longo beijo à sua frente e empinou o nariz. Pediu-lhes licença. Pegou duas cervejas com o barman. Deu a ele uma delas de presente. Brindaram. Cumprimentou a mocinha ao lado dele. O barman não entendia a naturalidade daqueles três. Dois beijos em cada face descorada da moça que por dentro chamava de vadia. Sorriu: _ Agora, pode voltar a beija-la, meu caro.
Talvez ele agora estivesse satisfeito.
Eles são muito civilizados, comentavam ao redor.
Leocádia foi ao banheiro, vomitou. O coração na privada.
Jogou longe o livro ao chão e o corpo à cama. Estava revoltada. Truffaut desgraçado. Nem mesmo na ficção Liliane conseguia alguma coisa. Na história do francês, o homem que amava as mulheres amava a todas, menos a Liliane. Pegou todas, menos a Liliane. Liliane era sua única amiga do sexo oposto.
Era daquelas que não gostava muito de sair de casa e quando o fazia era com roupas frouxas e cabelos a esconder o rosto. Achava-se feia. Falava muito pouco, geralmente em monossílabos. Achava que a vida não lhe dava chances. Os olhos estavam sempre na ponta dos sapatos.
Zero à esquerda, maldizia-se. Completara 26 anos, 26 anos, cara! e ainda conservava a inteireza. Nenhuma cariciazinha mais ousada, nada. Em pleno século XXI e ainda havia uma moça pura, a única. Sentia a carne tremer com seu divertimento predileto: ler sacanagens na internet. Cada detalhe, cada palavra baixa, cada movimento era acompanhado...
Um dia foi à uma sex shop. Morta de vergonha, meu Jesus! Não se deteve, tinha pressa, tinha medo, as faces coradas, os óculos escuros e um boné. Olhou assim rapidamente e optou por um de plástico branco, não muito grande nem muito pequeno. Aqueles outros feitos à semelhança lhe causarm repugnância.
Em casa, com a porta trancada, sentiu-se patética com aquele plástico frio e tremelento nas mãos. Desligou e rebolou à bolsa envolto em jornal. No dia seguinte, despejou o embrulho no banheiro do shopping. Morava com os pais e a mãe costumava revirar armários, gavetas e até mesmo lixo. A faxineira se dirigiu à cabine e Liliane correu. Do lado de fora, recompôs-se e foi olhar vitrines.
Foi nesse mesmo dia que voltou a considerar a vida em Cristo. Por que não, se meu destino é mesmo a solidão?, pensou. No convento, em poucos dias estava adaptada e sentia-se feliz como poucas. Não encontrou Jesus. Mas encontrou irmã Beatriz.
Liliane na verdade não queria o que acreditava querer. Ela queria um amor, apenas. E esse lhe parecia tão puro quanto as letras de seu próprio nome.
Isadora não poderia pensar no que aquela noite lhe reservava, ou até poderia, mas jamais imaginou que fosse realmente acontecer. Definitivamente aquele não era o tipo de fato que pudesse acontecer com alguém como ela. Com ela, então? Piada! Mas aconteceu.
Já estava bem tarde quando abriu a porta da rua e saiu. O odor característico e as pequenas poças mostravam que havia acabado de chover. Com seu grande guarda-chuva colorido, tal qual uma sombrinha de frevo, pôs-se a assobiar aquela famosa música de filme e a brincar com a água empoçada. Foi quando percebeu que alguém estava atrás dela, passo após passo. Será que a seguia?
Reconheceu-o. Sim, era ele. Correu, mas não muito, pois não sabia direito o que queria naquela noite. Na esquina, um prédio estranho serviu-lhe como abrigo. Era todo um reboco e parecia um prédio em construção. Ou seria abandonado? Correndo, subiu as escadas e o marrom acinzentado das paredes causava-lhe uma sensação estranha como um enjôo. Olhou para trás e ele ainda estava lá atrás dela. No encalço, incansável. Sorriam os dois; Isadora um pouco assustada, é verdade, mas também excitada.
Ele estava cada vez mais perto, estendendo os braços para tocá-la, ou agarrá-la. A água da chuva (voltou a chover) caía dentro do edifício, sobre as escadas, como se não houvesse teto. Os degraus diminuíam e o corredor se estreitava, com a opressão de suas paredes. Isadora sentia-se sufocada, embora pudesse ver o céu estrelado. O céu, limpo, despejava suas águas apenas sobre aquelas escadas.
A medida que ele se aproximava, as escadas mais e mais se estreitavam, impedindo a passagem de Isadora. Seu guarda-chuva enganchou entre as paredes e, no desespero para fechá-lo, sentia os suor gelado escorrer pelo corpo quente. O mecanismo do guarda-chuva não a ajudou. Angustiada e tentando a todo modo passar por ali, sentiu a mão dele agarrar com força seu corpo e a outra a tapar-lhe a boca. Inútil resistir, virou, sorriu e enganchou as pernas em volta dele, envolvendo-lhe a cintura. Beijando-se e rindo-se meio embriagados, chegaram a um salão no meio do prédio, onde pararam de repente.
Para o estranhamento de Isadora, ele tornou-se sério. Colocou-a no chão e entrou por uma porta, deixando-a só numa poça de lama. Tomada pela dúvida e pela curiosidade, abriu a porta e viu uma festa como ela gostava. De tudo, bem muito. Ele não a queria ali. Furioso, puxou-a com força pelo braço e sentou-a numa mesa do lado de fora com uma garrafa de destilado vagabundo. Ele, então, voltou para a festa, mas vez por outra saía e ficava ali na porta vigiando de longe, mas ostensivamente, os atos de Isadora. Ali, com um dos pés encostado na parede e fumando com aquela cara de mau, aquele ar blasé que ela tanto conhecia. Na cabeça de Isadora, parecia um michê.
Com a garrafa pela metade e uma terrível dor de cabeça, percebeu que fora mais feliz e desejada enquanto fugia. Pôs-se a correr o mais rápido que podia. Ele gritou algo que ela não conseguiu entender, mas não foi atrás dela. Novamente com aquele ar blasé que ela tanto detestava, acendeu outro cigarro e sentou no chão.
Novamente sentiu a chuva em seu rosto. Seu guarda-chuva continuava colorido como antes. E ela subia, subia, subia, desesperadamente, mais e mais. Sentiu que o ar faltava, mas continuava subindo correndo. De vez em quando olhava para trás esperançosa, mas para seu desgosto estava só, mais só do que quando saiu de casa sem grandes perspectivas. Mais uma vez o corredor das escadas de estreitava e o guarda-chuva batia de um lado e de outro, enganchava nas falhas do reboco. Embora continuasse a subir, tinha a sensação de que estava voltando.
Subia. Agora, o corredor estava realmente apertado. Pensou que não conseguiria passar, sair dali. Subiu os últimos degraus correndo, muito suada e quase sem fôlego. Deixou o guarda-chuva por ali, enganchado. Após muito esforço e muita subida, chegou a porta. Abriu-a de uma vez com força e raiva. Sentiu na cara algumas gotas de chuva sob o sol escaldante. A subida tinha sido realmente cansativa. No térreo, olhou a rua e encarou os pés sujos de lama.
* Baseado em um sonho que tive há uns dois anos. Um sonho com edição, movimentos de câmera e tudo mais. Se eu era Isadora? Sim, era. Quem era ele? Não interessa.
Não era a primeira vez que me sentia pequena. Já passei por isso tantas vezes que há muito deixei de contar – faltam-me dedos e memória. Já me senti pequena diante do mundo e de suas engrenagens incompreensíveis. Já me senti pequena diante dessa entidade poderosíssima que são os outros. E, claro, já me senti pequena diante dele. E foram muitas vezes. Mas tudo bem, minhas falsas idiossincrasias me salvaram em muitas dessas ocasiões – ou menos me concediam um sabor de superioridade, de jogo vencido, liquidado. Uma deliciosa sensação de não durava mais do que alguns minutos. Mal o via atravessar a rua, ainda fechando os botões, para faltar-me o chão. As paredes multiplicavam-se e comprimiam-me junto ao teto baixo. Eu era pequena.
Naquele dia, tanto tempo depois daquele último gim a dois, eu retornava. E essa viagem me era estranha. Difícil. Inexplicável. Era a consciência a martelar-me que eu não era mais a mesma do tempo das saias franjadas. Décadas passadas. Não tinha mais a mesma maciez das carnes, os fartos cabelos, a extravagância no vestir... Enfim tudo aqui tudo o que em mim o atraía era finito. Há muito não era aquela “sarita” – era assim que ele me chamava – que encantara a todos que como eu detestavam o carnaval. Inesquecível aquela noite no hotel. Risos, bebidas novas e fumaça e ele. Entorpeci-me, estava apaixonada. Nos amamos. Eu era, então, grande.
Você já se sentiu pequena diante de si mesma. Não. A juventude não permite isso tão facilmente. O fato é que dessa vez não me senti pequena diante dele. Senti-me pequena diante dela, aquela “sarita” que onde andasse chamava atenção. Ele também havia mudado e não parecia se incomodar com o quanto estávamos diferentes. Ele não se incomodava, mas eu sim. As rugas no meu rosto denotavam o passar dos anos e conotavam que eles não haviam sido complacentes comigo. Meu pulmão revelava no raio-x o que as constantes tosses já indicavam. Tonturas. Torturas. A necessidade da reposição hormonal jogava na minha cara que meu corpo estava se degenerando. À lenta morte do corpo juntavam-se a amargura das amizades perdidas, os amores fracassados, os filhos não tidos. Era uma lenta agonia sem possibilidade de cicatrização. Mal sem remédio. Eu era agora minúscula.
O tempo. O mundo. O amor. Tudo tão inexorável. O que fazer? Ainda sangra, dói, tortura... Oh, Deus! O fim vem lentamente, mas em breve chegará. Até lá, o contrate provocado pelo tempo entre nós duas continua me matando aos poucos e a fortalecendo a cada dia. Mas tomei uma decisão. Na próxima vez que nos encontrarmos nós três – eu, ele, ela – mão ficarei calada, não fingirei que a ignoro. Eu a admiro e direi isso a ela. Tiro este alfinete dos lábios e agradeço. Afinal, é esta “sarita” quem ainda arranca algum sorriso de dentro desta náufraga de si mesma que acabei me tornando. Ainda tenho meus momentos de grandeza.
P-R-O-S-T-I-T-U-T-A. Cada letra chispada por entre os dentes do marido chicoteavam no ouvido. Eram como bofetadas, uma atrás da outra. Arfado extrapolando o decote.
Acordou.
Mais um dia na sua vida. Mais um dia igual ao anterior. Mais um dia igual ao próximo. Mais um dia... crianças na escola, panelas no fogo, jornal na mesa. As crianças brigam, a comida queima, o marido reclama. Vidinha.
Por que casara?
Uniu sua vida à de um outro que mal conhecia, seu primeiro e único namorado. Isso aos quinze anos. A família, evangélica, fazia muito gosto na união. Cerimônia religiosa, lírios brancos, noiva virgem. “Tudo como manda o figurino”, dizia a mãe, repetiam as tias, ecoava o pai. E assim o foi. As normas e recomendações do pai passaram automaticamente a ser obrigação do marido para manter sua bela esposa na linha.
A linha... Como se algum dia tivesse ousado sair dela.
Não usava maquiagem ou roupas provocantes. Nunca usara uma saia mais curta, uma blusinha estampada... decote, então, nem-pensar-credo-em-cruz! Obviamente, não bebia, não fumava. Sua vida que já não era emocionante acabou-se de vez com o matrimônio.
Sentia-se morta de olho aberto.
Vivia apenas para cumprir as obrigações domésticas, de mãe e esposa. Até o colégio abandonara, ainda antes de completar o segundo grau. O marido culpou a barriga, claro. Não dirigia e quase não saía de casa. Os passeios eram a feira, a farmácia, o supermercado, a reunião de pais e mestres, o culto. O mais longe era a casa dos pais. Ia calada no carro do estrupício do marido e nem o som podia ligar “porque as rádios não prestam”.
Virava os olhos por dentro.
Mas gostava mesmo era de cinema. No que dependesse do marido, porém, era entretenimento bissexto. E mesmo assim só iriam à sala escura após uma rigorosa avaliação moral do filme. Nada de pipoca, nada de refrigerante, nada de nada que “é tudo besteira”. “E mulher decente não bota o pé assim em cima da cadeira da frente”.
Encolhia-se.
O que ele não sabia é que toda semana ela inflacionava a feira ou inventava remédio. Com o dinheiro fugia para o Centro e entrava em um cinema. Qualquer um, o primeiro, sem critério algum. No começo, era uma vez por semana. Depois, duas. Saía mais cedo e ia a pé pra economizar o dinheiro do ônibus. Assistia a todo gênero de filme. Todo mesmo. Ia aos pardieiros mais derrubados e viu coisas que nunca imaginara.
Olhos arregalados, boca seca e calor por toda a parte de dentro.
Era uma mulher sensível, dessas que se emocionam, choram, se envolvem. Quando voltava para casa, ficava sonhando, imaginava-se em cada personagem do drama, da comédia, do romance. Daqueles outros também. O marido, burocrático como ele só, nem cogitava a idéia de uma noite com mais de vinte minutos, que sempre se encerrava com o banho dela e o ronco dele. O resto era coisa de mulher da vida, não da santa esposa.