Lucíola não é uma pessoa que tem o hábito de mandar os outros tomarem no cu. Portanto, no dia em que ela fizer isso, leve a sério. Mesmo depois de algumas cervejas. Principalmente se ela se levantar, olhar nos seus olhos e falar bem pausadamente. Ela quando tem algo a dizer diz é na cara. Porque tem gente que merece.
Se arrependimento matasse, já era hora de encomendar a missa de sétimo dia da garota.
Foi naquela noite que Lucíola tentou se matar e não conseguiu. Achava que seria o suficiente para renascer outra. Nada! Inércia era a palavra. Lucíola insistia em viver. Que merda. O chuveiro é que sabe, o Coldplay é que sabe, aquela outra canção teimando no estômago. Vomitou mais por nojo de si mesma do que pelo vinho barato. Depois pensou que ora bolas, toda tentativa é válida para tentar jogar o tempo perdido na latrina e sentir de novo. O problema é que não sentiu e foi decepção demais para ela. Que diabos teria acontecido a ela? Por que esse olhar de zumbi? Lucíola agora vai tentar dormir porque é o único momento do dia em que não quer fugir de si.
* * *
Lucíola deve ter algum problema de memória:
Não consegue esquecer.
Para marcar um ano e seis meses de vida deste meu blog alternativo e pretensioso, nossa segunda parceria. Acho que está valendo a pena.
77
Lembro-me bem do ano de 77. E ele não foi melhor ou pior do que qualquer outro. Apenas me trouxe até aqui. Tem dias que o melhor me parece simplesmente não acordar, ver o Sol surgir, alto e imponente, e dar-lhe as costas. Talvez hoje, finalmente, eu tenha o que comemorar: aprendi que meus instintos podem estar certos, que eu sei o que fazer quando o Sol se mostra. Ontem, até acordei e dei-lhe uma boa encarada, mas fui para o lado oposto. Vou explicar e você vai entender porque estou falando assim bonito. A história não é, vou logo avisando. Até agora ainda não sei se foi grandeza, piedade, covardia ou o quê me motivou a tomar essa atitude.
Só sei que afinal o tal do Andrade tinha reaparecido e estava na minha mão o destino daquilo tudo. Pacaembu lotado, não cabia mais nem o frio daqueles dia de julho. Marcava oito graus, mas o povo todo suava. Eu também. Mas o meu motivo era diferente. São Paulo e Palmeiras que se explodissem! Finalmente consegui chegar no local combinado. Esperto esse Andrade... bem em frente ao camarote da imprensa.
Ele me encontrou primeiro. Como me reconheceu? Fácil, preto marrudo, corrente a dar com o pau no pescoço, cara de enfado e sem blusa de time. Ah, e o tique de ficar arrancando casca das espinhas... Quando passei a mão no queixo, vi que sangrava. Limpei o sangue e o pus na gola da blusa e estendi o braço. O outro fez cara de nojo e evitou o aperto de mão. A arma no meu bolso chega coçava. Se fizesse o serviço, eram novecentos mil no meu bolso e moral, muita moral. Vantagem de ser policial é que pode ter a revista que tiver que não vão te tirar o revólver, afinal você está do lado da lei.
Mas, afinal, por que diabos o Andrade tinha voltado? Ele gaguejava. E eu fiquei pensando como é que esse mané deu um golpe em alguém. Como tinha virado lenda? Quando eu entrei no esquema, só se falava de vingança contra esse Andrade. Era um otário. Pensava que com a morte do Souza seria perdoado e poderia se arranjar de novo por aqui. Afinal, já se vão mais de vinte anos, você sabe, muito tempo..., dizia. Como se o Souza tivesse amargado sozinho o prejuízo. Solitária só a vergonha mesmo. Agora, eu entendia por que o Souza tinha vergonha. Ser passado para trás já não é fácil, principalmente se você é o maioral. Ainda mais por um paspalho daquele tipo...
O celular tocou e eu não escutava nada. Pedi para o Andrade esperar um minuto e subi até a cabine da imprensa. Tinha uns amigos lá, um pessoal que já tinha feito cobertura policial. Pude, então, ouvir que tinham levantado a ficha do sujeito. Lá de cima constatei que o cara era mais mané do que eu supunha. Acredite, mas ele realmente ficou lá me esperando e se entupindo de cachorro-quente. E se você pensa que o Andrade fez segredo de algo, se engana. Na vizinhança, todo mundo já sabia que o cara tinha voltado, lascado de banda a banda. Sem um tostão, foi para o endereço mais óbvio, a casa da mãe, em São Miguel.
Depois do golpe, o Andrade tinha fugido para a Argentina. Lá, conheceu uma dona, que se não era rica, ao menos tinha costas quentes. Foram morar na Europa. Férias nos Estados Unidos e, em Las Vegas, a mulher sumiu. Fugira com outro. O estúpido, com medo de ser encontrado pelo Souza, tinha passado tudo para o nome da argentina. Perdeu o pouco que tinha restado nas mesas de carteado. Ingenuamente, achou que aqui tinham esquecido sua armação e que poderia voltar sem problemas. Parece que se esqueceu de como funcionava o esquema, qual era a moeda para traição. Para os companheiros do Souza, 1977 não ia se acabar assim, em faz de conta que foi nada.
Enquanto voltava lá para baixo, fui vendo a merda em que estava me metendo. Se matasse o Andrade ali, estava em uma enrascada feia. Não ia me confiar por ser policial. Se ao menos fosse delegado... Mas minhas costas não eram tão boas assim. O idiota nem tinha levado uma arma ao encontro para eu forjar uma cena. Eu só tinha a minha. Sei que se parasse e pensasse um pouco, encontraria uma solução. Mas não havia mais tempo e se eu saísse dali sem fazer o combinado, quem ia levar papoco era eu. Olhei para a cara daquele infeliz, todo lambuzado de maionese, e tive pena. Esse era um pato que nunca mais ia ter uma sorte como aquela na vida. Estava condenado a viver com medo, perseguido, ladrãozinho medíocre. Um dia ia não iria acordar. O corpo cravado de balas.
Mas não ia ser eu que ia fazer isso. Quase meio milhão que eu tinha recebido antecipado era o suficiente para tudo o que eu quero, não sou de grandes ambições. Esperei o fim do jogo, o empurra-empurra e em meio aos fogos, dei-lhe um tiro nas costas, propositadamente não-fatal. Para depois não dizerem que eu tinha sido um frouxo. Qualquer coisa, eu tinha tentado, mas foi a multidão que atrapalhou, saca? Aliás, ninguém nem percebeu o Andrade caído no chão, parecia invisível. Um cachorro manco teria chamado mais atenção. Saí tranqüilamente do estádio. Tocava o hino do vencedor e isso me incomodava.
Ser policial é bom também pelos amigos, os amigos certos, muito favor trocado. Atravessei a fronteira com facilidade. Agora, era ter cuidado para não me tornar um Andrade. Mas não tem nem perigo. Nunca que vou me meter em jogo ou me casar com uma argentina escrota. Aliás, nunca vou casar, vou só me divertir, comprar uns imóveis - que é dinheiro quase parado - e me lembrar para toda a vida desse ano de 2004, esse sim marcante. Meu caro, 77, eu já disse, só fez me trazer aqui. Nada de bom ou de ruim. Minto. Como fui esquecer? Em 77, o Timão foi campeão paulista após mais de 20 anos. Afinal, mais de vinte anos, você sabe. E eu me lembro dos fogos até hoje. Muita emoção, colega.